segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

A quadratura do círculo


Só para os mais desatentos é que o despedimento de José Peseiro constituiu uma surpresa: apesar dos acontecimentos do Verão de 2018, da pré-época atípica e da falta de qualidade de um plantel para as aspirações do Sporting, a equipa, colectivamente, apresentava um futebol terrível e cujos resultados negativos, já em sucessão perigosa, arriscavam alimentar uma bola de neve cada vez mais incontrolável para a estabilidade do clube. Frederico Varandas tomou uma decisão corajosa -- e certa -- de dispensar dos serviços do treinador português e, optando por um momento de paragem nas competições entre clubes, escolheu um treinador identificado, por si, como o homem certo para levar a cabo o seu projecto. O presidente surpreendeu e foi até aos Emirados Árabes Unidos buscar o antigo treinador da equipa júnior e sénior do Ajax (então treinador do Al Jazira): alguém que, no papel, adequa-se aos princípios de formação de jogadores jovens e que mostrou, na sua curta carreira, a preferência por um futebol de ataque com uma média muito elevada de golos marcados. Keizer chegou e, com apenas duas semanas de treino, mostrou esses princípios que tanto entusiasmam o adepto de uma equipa grande (ou de qualquer outra): um jogo pelo centro do terreno, a recusa das bolas longas e da insistência nos cruzamentos, a procura da posse de bola e uma pressão agressiva após a perda, e uma equipa que procura sempre o golo independentemente do resultado. Os jogadores do Sporting pareciam libertados: em quase uma dezena de jogos, a média de golos marcados era superior a quatro por jogo, os jogadores surgiam com outra confiança (e divertiam-se em campo), e alguns jovens começavam a ser introduzidos nas convocatórias e a ganhar minutos. 

Os adversários estudaram o sistema do Sporting e o clube sofreu, pouco depois, duas derrotas no campeonato (contra o Vitória de Guimarães e o Tondela, ambas fora). Keizer, em resposta ao momento da equipa, abdicou do futebol atacante de primeiro toque, conduzido pelo centro do terreno, e, no meio de um calendário fisicamente extenuante, pediu à equipa para jogar com menos risco na construção. O futebol da equipa regressou, então, ao trabalho que se viu no início à época: bolas longas dos centrais para o avançado ou para os extremos, no outro lado do campo, e cruzamentos, para a área, à espera de um bom destino, mantendo uma distância assinalável entre sectores e a entrega da iniciativa de jogo, muitas vezes, ao adversário. O Sporting abdicou de marcar muitos golos, colocou de lado os novos princípios com que a equipa trabalhava, e, pior do que isso, continuou a sofrer os mesmos golos (ou mais ainda), desenvolvendo, no meio de uma terrível quebra no rendimento físico da equipa, uma quebra na confiança entre os jogadores e o que lhe pedia a equipa técnica.

Se Marcel Keizer chegou num momento da época que nunca treinador deseja -- a meio dela, sem conhecer o grupo de trabalho -- e a sua gestão, por isso mesmo, ser discutível mas algo compreensível (o treinador fez pouca rotação, até ao fecho do mercado de Inverno, por estar preso à necessidade de criar rotinas), há sinais colectivos, no entanto, que são preocupantes para o futuro do Sporting. Se a gestão de expectativas sempre foi um problema do clube, fruto de lutar por um título com condições sempre inferiores às dos seus rivais no que toca à qualidade individual dos seus jogadores, importa olhar, contudo, para como a equipa joga dentro de campo em termos colectivos. E, neste momento, independentemente das aspirações (ocupar o primeiro, segundo ou até terceiro lugar), o Sporting não é uma equipa preparada para todos os momentos do jogo, característica essencial para qualquer equipa grande que procure a regularidade exibicional, uma dinâmica de vitórias e, consequente, a confiança dentro do grupo de trabalho. 

Entre os vários problemas, há um gritante que foi exposto, em toda a linha, contra a equipa que melhor constrói e ataca em Portugal (o Sport Lisboa e Benfica): o momento sem bola (como exposto, de forma muito clara, neste texto do Lateral Esquerdo). Com jogadores bem posicionados e princípios bem trabalhos, qualquer opositor consegue explorar, de maneira fácil e rápida, os espaços deixados em aberto pelo Sporting, chegando à baliza leonina numa questão de segundos. Contra o eterno rival, o desnorte colectivo de uma linha defensiva completamente descoordenada, deixada à mercê do opositor, também, pela falta de posicionamento do meio-campo e dos extremos, mostrou a diferença para um adversário que, apesar de ser superior individualmente, revela a sua maior força, tal como qualquer equipa dominadora e vencedora, nos seus princípios de jogo, em todos os seus momentos, e, acima de tudo, na qualidade do seu treino (onde estes são trabalhados). Neste ponto, o futebol de Keizer parece revelar as diferenças actuais entre o futebol holandês e português (algo que deveria ter sido levado em consideração na escolha e experiência do treinador): uma inferioridade, do primeiro para o segundo, em relação aos princípios de trabalho e de treino defensivo, e uma anarquia consequente nos tempos e termos da reacção, leitura e posicionamento do comportamento sem bola. Basta dizer que o Sporting, apesar de não ter a pior equipa (ou os piores defesas) do campeonato português, é das equipas que pior defende em Portugal (e poderíamos dar início, neste ponto, à actual crise do futebol holandês, mas deixamos o tópico para analistas de facto).

Não faz falta, ao Sporting, abdicar dos princípios de um futebol ofensivo, que busca a inteligência de um jogo no chão e pelo centro do terreno, para conseguir os resultados que deseja. Basta apenas treinar e jogar para que consiga responder a todos os momentos do jogo, sem ter que abdicar de um em vez de outro: não apenas com bola mas sem bola, não apenas em transição ofensiva mas em transição defensiva. Com os objectivos da época a estreitarem-se, Keizer encontra-se em estágio no futebol português até ao final da época. A dúvida já não parece ser se o treinador holandês conseguirá trazer o sucesso que o Sporting lhe pediu -- será, neste momento, se Keizer irá sair, do futebol português, melhor treinador do que quando cá chegou. De parte da direcção, a dúvida será se ainda deverá tomar, no final da época, outra decisão tão corajosa quanto tomou com José Peseiro (naquilo que seria o reconhecimento de um erro de casting que apenas o próprio treinador poderá contrariar até ao final da época). Existem em Portugal, neste momento, novos treinadores que, mesmo com expectativas realistas face às possibilidades do clube, conseguiriam desenvolver um futebol adequado a uma equipa grande -- trabalhando tanto princípios ofensivos como defensivos -- e formar jovens talentos, que esperam por uma oportunidade na Academia, para solidificar não apenas o futebol do Sporting mas, também, salvaguardar um projecto administrativo que merece tempo para cimentar as bases já implementadas na sua estrutura desportiva, de formação e de prospecção. Nenhum sportinguista pediu, este ano, a conquista do campeonato: apenas espera por sinais de competência, dentro e fora de campo, para recuperar o tempo perdido em relação aos rivais. Caberá à administração, no final da época, entender, tal como fez com José Peseiro, que essa avaliação deve ser feita não apenas pelos resultados mas, numa equipa com a dimensão do Sporting, pela preparação do grupo de trabalho face às exigências do futebol português dentro das quatro linhas.