terça-feira, 11 de maio de 2021

Da felicidade


"Le bonheur se raconte mal", escreveria Henri-Pierre Roché no livro Jules et Jim e que François Truffaut adaptaria no seu filme de 1962. Não é fácil falar ou escrever sobre a felicidade, de facto, nem sequer quando tentamos explicar aquilo que nos passa pela cabeça quando sabemos que o nosso clube se encontra, nas últimas três jornadas do campeonato, a apenas dois pontos de quebrar um jejum de dezanove anos na conquista do título de campeão. Nos últimos trinta anos, acaba por ser mais fácil, por isso, falar daquilo em que se tornaria o "acontecer Sporting": uma tendência irresistível para o abismo na performance desportiva e em actos de gestão que pareciam vir de alguém, entrincheirado numa guerra sem fim, que adoptava estratégias contrárias, à medida que as épocas passavam, para salvar um clube da sua rendição e derrota final. Um clube, por outras palavras, que mais se entretinha a travar guerras contra si mesmo e que descobria, nas vitórias dos outros, um motivo para atacar aqueles que, partilhando a mesma camisola, lhe pareciam antes se definir por categorias mais ou menos merecedoras de sportinguismo.

Nos últimos trinta anos, é mais fácil, por isso, nos recordarmos da dor trazida por uma final europeia perdida em casa, de campeonatos perdidos em momentos decisivos, de relatórios de contas e planos de insolvência, de jogadores da formação emprestados para outros sem futuro travarem o seu crescimento, ou de um traumático episódio em que um plantel inteiro se viu agredido, no seu santuário, e alguns dos seus maiores valores decidiram rumar a outras paragens para seguirem com as suas vidas. O clube jogava contra si mesmo a cada momento e este último episódio, sobre o qual muito já se escreveu, ainda hoje serve para dividir adeptos entre leais ou não leais a causas e fantasmas que substituem o elo transversal que nos une.   

Será possível, afinal, vencer uma guerra sem inimigos? No desporto, a vitória faz-se, em primeiro lugar, pela força de uma união e pela crença num projecto, muito antes de olharmos à nossa volta e, talvez assombrados pelo nosso poder ou por quem cremos que nos deseja destruir, preferirmos salvaguardar projectos pessoais em vez de colectivos. Foram poucos os momentos em que a gestão do Sporting não teve consequências desastrosas, ao longo dessas décadas, e foram poucos os momentos em que os adeptos, por outro lado, não mais vestiram as suas camisolas e deixaram de acreditar que, apesar de tudo, os jogos continuavam a ser para ganhar. O sportinguista sempre se agarrou à sua paixão, à sua esperança, a um sentimento de pertença a um clube que sempre precisou da ilusão para sonhar com a conquista máxima. E hoje, aqui estamos: depois de tantas guerras e, ainda, da época com o maior número de derrotas da sua história, o Sporting está a dois passos de se tornar campeão nacional.

"E se correr bem?", diria Rúben Amorim na conferência de imprensa de apresentação como treinador do Sporting. Com essas palavras, o treinador entraria no universo sportinguista e ousaria revirar, então, a equação que nos parecia definir. Como a sua grandeza exigia, "acontecer Sporting" poderia ser, afinal, uma resposta natural a um desígnio de vitória, alimentando-se da mesma naturalidade com que os sportinguistas entram no estádio com o desejo de ver a equipa ganhar cada jogo que disputam. Também com naturalidade, Rúben Amorim vestiu o ADN sportinguista e colocou a formação do clube dentro de campo, respondendo ao seu desígnio, finalmente, como os adeptos ansiavam ver desde sempre. A sua experiência com Jorge Jesus, curiosamente, e o seu feitio, enquanto jogador, ajudá-lo-iam a encontrar o equilíbrio certo entre formação, protecção, e exigência, criando um grupo de trabalho onde a união, o esforço, e a fraternidade seriam elementos naturais entre o jogador mais novo, o mais experiente, o menos titulado, ou o mais velho.

Poucos treinadores parecem reflectir tão bem aquilo que o Sporting representa e deve representar, no desporto nacional, como o jovem treinador português, e se muitas críticas apontámos à primeira metade do mandato de Frederico Varandas (e como as suas declarações pareciam, em vez de unir, dividir ainda mais um universo já fracturado), devem-lhe ser dirigidas palavras de apreço por ousar trazer, num gesto de "loucura", quem lhe mostrava isso aos seus olhos e mais ninguém via. O espaço oferecido para que Amorim fizesse o seu trabalho e a interrupção que impôs às suas próprias comunicações pessoais foram outras decisões bem-vindas numa direcção que parece ter aprendido com os seus erros e que viu, em Amorim, alguém com quem finalmente poderia aplicar o que prometera aos sócios antes das eleições: a valorização da formação, um scouting competente, a aposta no mercado interno, e um perfil, em cada jogador, que respondesse à exigência competitiva do Sporting, dentro e fora de campo, e um potencial de valorização para vendas futuras. 

Ainda não saberemos o que o futuro nos irá trazer, nem mesmo se o jejum será mesmo interrompido apesar de finalmente sermos candidatos a vencer. Independentemente de tudo isso, Amorim trouxe uma mudança e uma lufada de ar fresco, ao futebol português, e um impacto estrutural e desportivo, ao Sporting, que lembra aquele que Jesus e Mourinho trouxeram a rivais: não em termos de títulos, para já, mas na transformação competitiva que trouxeram aos seus clubes e às formações tácticas que vieram a se disseminar por um campeonato. Independentemente do que amanhã e depois nos dirá, ficamos com a imagem de Dário Essugo que, aos dezasseis anos, se estreou em campo para segurar uma vitória do Sporting e que deitaria lágrimas de emoção por envergar o seu emblema e ajudá-lo a ser feliz. É a sua inocência, também, que fá-lo sentir essa paixão, na sua jovem idade, e que reflecte aquela que um adepto sente na bancada quando grita um golo dos seus jogadores. É essa inocência que devemos recuperar e acolher, enquanto sportinguistas, para que olhemos para essas lágrimas e aconteça Sporting, muitas mais vezes, tal o seu desígnio nos pede desde o dia em que os nossos sonhos nasceram.  

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Jackpot

No último texto, deixámos expresso o nosso desejo de dar tempo ao clube — jogadores, equipa técnica, e administração — para manter o novo caminho escolhido, com a chegada de Rúben Amorim, e oferecer as melhores condições possíveis para o Sporting chegar ao título no próximo mandato. Apenas quatro meses depois, o Sporting fecha metade do campeonato com a sua melhor primeira volta de sempre: 14 vitórias, 3 empates, 0 derrotas, 9 golos sofridos, e um primeiro lugar isolado, na tabela, com uma distância de 6 pontos para o segundo classificado e outra de 9 para o terceiro.

Não existe nenhum sportinguista, neste momento, que não esteja já a pensar mais alto. É esta a natureza do clube. A nossa satisfação, contudo, não se prende apenas com o actual primeiro lugar: prende-se com a maneira como lá chegámos. Depois de uma época a lembrar o pior de Godinho Lopes, Frederico Varandas colocou todas as fichas no novo treinador-sensação da liga e tornou-o num dos técnicos mais caros da história do futebol. Uma aposta de enorme risco — a maior de um mandato até aí errático e frustrante — e que ultrapassou, até agora, todas as previsões e expectivas. Rúben Amorim, com o seu perfil e as suas decisões, trouxe, à direcção, aquilo que ela tinha prometido antes das eleições: uma equipa que junta a qualidade da formação a contratações cirúrgicas (com correspondência a um modelo de jogo) e que personifica, dentro e fora de campo, o compromisso exigido pelos objectivos do Sporting. Depois de uma "pré-pré-época", o novo mercado de Verão traria alguns dos melhores jogadores do campeonato fora do trio dos clubes grandes e o mercado de Janeiro conseguiria preencher, também, as últimas peças do puzzle (sobretudo a mais flagrante: a do avançado), conseguindo-se estreitar nacionalidades, por fim, para potenciar uma melhor comunicação no grupo.

O carisma de Amorim é óbvio e a empatia que consegue com os jogadores é outra das razões para o seu sucesso. Antes disso, contudo, devolveu uma identidade ao nosso futebol, ensinou os jogadores a defender e a atacar em bloco (algo que já não acontecia desde... Jorge Jesus), e introduziu uma mobilidade, no trio da frente, que garante variabilidade e criatividade a uma estrutura bem definida. Independentemente do resultado final deste campeonato, o jackpot do Sporting é esse: onde o clube tremia, dentro e fora de campo, hoje parece sólido, confiante, e seguro, fruto da competência da sua equipa técnica e, também, de uma direcção que lhe deu espaço e tempo para trabalhar. Tão grande quanto o nosso desejo para o final desta maratona, em termos desportivos, é o desejo de que Amorim e a sua filosofia de trabalho deixem uma influência na profissionalização da estrutura do futebol do Sporting. Quando todos sabem o que querem e somos fiéis a uma identidade, dentro e fora de campo, os resultados acabam por aparecer. Para já, celebremos esta primeira vitória. O clube merece.

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Um mercado (quase) bom


As expectativas eram baixas, depois do desastroso planeamento da época anterior, em relação ao novo mercado de transferências: um conjunto de más decisões, entre contratações, empréstimos, e dispensas, para além de quatro treinadores, que fizeram da primeira época inteira da administração de Frederico Varandas uma das piores do currículo desportivo do clube (talvez apenas ultrapassada pelo famoso 7.º lugar de Godinho Lopes). Se uma das suas piores decisões conseguiu mesmo ser repetida (a indesculpável incapacidade em reforçar o plantel com um novo avançado, fazendo com se inicie a época sem um avançado-centro da confiança do treinador), é importante afirmar, ainda assim, que as restantes abordagens ao mercado foram positivas.

De todos os sectores, o meio-campo foi aquele que sofreu maiores transformações: Palhinha, Matheus Nunes, Daniel Bragança, Pedro Gonçalves e João Mário formam um interessantíssimo grupo de jogadores, sobretudo após a chegada deste último. Talvez uma das maiores cartadas deste defeso, o internacional português, formado em Alcochete, é um elemento que eleva o plantel do Sporting para um patamar superior e permite encarar a luta pelo terceiro lugar (que dá acesso, este ano, à pré-eliminatória da Champions) com outra estabilidade e confiança. Desejoso de participar no campeonato da Europa (a realizar-se no próximo ano), João Mário trará a determinação necessária para aumentar índices de competitividade e ajudar jovens jogadores, à sua volta, a ganharem experiência e conhecimento sobre o jogo. Nas alas, a dupla do meio-campo (que poderá variar consoante as necessidades defensivas ou ofensivas) será acompanhada por dois laterais que têm todas as capacidades para construir e fazer chegar a bola a zonas de finalização: Porro (jogador que, ainda assim, apresenta carências defensivas) e Nuno Mendes, um jovem de 18 anos que já espalha magia, nos relvados, e que poderá vir a ser um dos melhores laterais esquerdos do futebol internacional.

Com a inexistência de uma referência ofensiva indiscutível (a última peça que tornaria o plantel do Sporting numa equipa verdadeiramente competitiva), Rúben Amorim tem trabalhado uma grande variação posicional no trio da frente. Entre Pedro Gonçalves, Tiago Tomás, Tabata, Plata, Nuno Santos (mais adequado à ala), Vietto ou Jovane (estes dois frequentemente adaptados à posição de "falso nove"), o Sporting consegue dinâmicas ofensivas interessantes que dão a volta, de certo modo, à ausência de um avançado que seja o centro do seu jogo (alguém que se envolva na construção, que crie, e que finalize: um avançado completo que não é Sporar, ainda pouco agressivo e algo ausente, ou Luiz Phellype, mais focado no momento da finalização e menos no envolvimento com os colegas).

A baliza foi reforçada com Adán, alguém que, apesar da má exibição frente ao LASK, traz segurança à defesa e permitirá outra evolução a Luís Maximiano, guarda-redes jovem de enorme potencial. É na defesa, por fim, que se encontram os elos mais fracos: Feddal (bom no passe mas fraco nas abordagens defensivas e na decisão) e Neto (eficiente no compromisso defensivo, mas pouco mais). Talvez seja demasiado pedir a Amorim para rodear Coates com dois excelentes mas inexperientes defesas: Eduardo Quaresma e o esquerdino Gonçalo Inácio. Compreende-se a decisão de proteger a evolução de jogadores que, ainda no ano passado, jogavam na Liga Revelação e transitaram directamente para o futebol sénior. Mas é em ambos que existe maior qualidade para a linha defensiva e a sua capacidade de construção (essencial numa linha de três centrais). A eles pertencerá o futuro (próximo) da defesa do Sporting.

Uma nota final para as questões financeiras: conhecidas as dificuldades do clube, o Sporting optou pela compra de 50% do passe em várias das suas aquisições, um modelo de gestão que dificulta a rentabilização de activos no futuro. Com uma gestão cuidada, ao longo da época, e uma possível (mas difícil) qualificação para a Liga dos Campeões, talvez o Sporting consiga reforçar esses investimentos, manter a base do plantel, e trazer dois ou três jogadores que reforcem as carências ainda existentes. Esta parece ser, finalmente, a primeira época de transição para o Sporting do futuro. Resta à administração preservar o caminho traçado e oferecer, no próximo mandato, as melhores condições possíveis para termos uma equipa que permita lutar pelo título.