"Le bonheur se raconte mal", escreveria Henri-Pierre Roché no livro Jules et Jim e que François Truffaut adaptaria no seu filme de 1962. Não é fácil falar ou escrever sobre a felicidade, de facto, nem sequer quando tentamos explicar aquilo que nos passa pela cabeça quando sabemos que o nosso clube se encontra, nas últimas três jornadas do campeonato, a apenas dois pontos de quebrar um jejum de dezanove anos na conquista do título de campeão. Nos últimos trinta anos, acaba por ser mais fácil, por isso, falar daquilo em que se tornaria o "acontecer Sporting": uma tendência irresistível para o abismo na performance desportiva e em actos de gestão que pareciam vir de alguém, entrincheirado numa guerra sem fim, que adoptava estratégias contrárias, à medida que as épocas passavam, para salvar um clube da sua rendição e derrota final. Um clube, por outras palavras, que mais se entretinha a travar guerras contra si mesmo e que descobria, nas vitórias dos outros, um motivo para atacar aqueles que, partilhando a mesma camisola, lhe pareciam antes se definir por categorias mais ou menos merecedoras de sportinguismo.
Nos últimos trinta anos, é mais fácil, por isso, nos recordarmos da dor trazida por uma final europeia perdida em casa, de campeonatos perdidos em momentos decisivos, de relatórios de contas e planos de insolvência, de jogadores da formação emprestados para outros sem futuro travarem o seu crescimento, ou de um traumático episódio em que um plantel inteiro se viu agredido, no seu santuário, e alguns dos seus maiores valores decidiram rumar a outras paragens para seguirem com as suas vidas. O clube jogava contra si mesmo a cada momento e este último episódio, sobre o qual muito já se escreveu, ainda hoje serve para dividir adeptos entre leais ou não leais a causas e fantasmas que substituem o elo transversal que nos une.
Será possível, afinal, vencer uma guerra sem inimigos? No desporto, a vitória faz-se, em primeiro lugar, pela força de uma união e pela crença num projecto, muito antes de olharmos à nossa volta e, talvez assombrados pelo nosso poder ou por quem cremos que nos deseja destruir, preferirmos salvaguardar projectos pessoais em vez de colectivos. Foram poucos os momentos em que a gestão do Sporting não teve consequências desastrosas, ao longo dessas décadas, e foram poucos os momentos em que os adeptos, por outro lado, não mais vestiram as suas camisolas e deixaram de acreditar que, apesar de tudo, os jogos continuavam a ser para ganhar. O sportinguista sempre se agarrou à sua paixão, à sua esperança, a um sentimento de pertença a um clube que sempre precisou da ilusão para sonhar com a conquista máxima. E hoje, aqui estamos: depois de tantas guerras e, ainda, da época com o maior número de derrotas da sua história, o Sporting está a dois passos de se tornar campeão nacional.
"E se correr bem?", diria Rúben Amorim na conferência de imprensa de apresentação como treinador do Sporting. Com essas palavras, o treinador entraria no universo sportinguista e ousaria revirar, então, a equação que nos parecia definir. Como a sua grandeza exigia, "acontecer Sporting" poderia ser, afinal, uma resposta natural a um desígnio de vitória, alimentando-se da mesma naturalidade com que os sportinguistas entram no estádio com o desejo de ver a equipa ganhar cada jogo que disputam. Também com naturalidade, Rúben Amorim vestiu o ADN sportinguista e colocou a formação do clube dentro de campo, respondendo ao seu desígnio, finalmente, como os adeptos ansiavam ver desde sempre. A sua experiência com Jorge Jesus, curiosamente, e o seu feitio, enquanto jogador, ajudá-lo-iam a encontrar o equilíbrio certo entre formação, protecção, e exigência, criando um grupo de trabalho onde a união, o esforço, e a fraternidade seriam elementos naturais entre o jogador mais novo, o mais experiente, o menos titulado, ou o mais velho.
Poucos treinadores parecem reflectir tão bem aquilo que o Sporting representa e deve representar, no desporto nacional, como o jovem treinador português, e se
muitas críticas apontámos à primeira metade do mandato de Frederico Varandas (e como as suas declarações pareciam, em vez de unir, dividir ainda mais um universo já fracturado), devem-lhe ser dirigidas palavras de apreço por ousar trazer, num gesto de "loucura", quem lhe mostrava isso aos seus olhos e mais ninguém via. O espaço oferecido para que Amorim fizesse o seu trabalho e a interrupção que impôs às suas próprias comunicações pessoais foram outras decisões bem-vindas numa direcção que parece ter aprendido com os seus erros e que viu, em Amorim, alguém com quem finalmente poderia aplicar o que prometera aos sócios antes das eleições: a valorização da formação, um
scouting competente, a aposta no mercado interno, e um perfil, em cada jogador, que respondesse à exigência competitiva do Sporting, dentro e fora de campo, e um potencial de valorização para vendas futuras.
Ainda não saberemos o que o futuro nos irá trazer, nem mesmo se o jejum será mesmo interrompido apesar de finalmente sermos candidatos a vencer. Independentemente de tudo isso, Amorim trouxe uma mudança e uma lufada de ar fresco, ao futebol português, e um impacto estrutural e desportivo, ao Sporting, que lembra aquele que Jesus e Mourinho trouxeram a rivais: não em termos de títulos, para já, mas na transformação competitiva que trouxeram aos seus clubes e às formações tácticas que vieram a se disseminar por um campeonato. Independentemente do que amanhã e depois nos dirá, ficamos com a imagem de Dário Essugo que, aos dezasseis anos, se estreou em campo para segurar uma vitória do Sporting e que deitaria lágrimas de emoção por envergar o seu emblema e ajudá-lo a ser feliz. É a sua inocência, também, que fá-lo sentir essa paixão, na sua jovem idade, e que reflecte aquela que um adepto sente na bancada quando grita um golo dos seus jogadores. É essa inocência que devemos recuperar e acolher, enquanto sportinguistas, para que olhemos para essas lágrimas e aconteça Sporting, muitas mais vezes, tal o seu desígnio nos pede desde o dia em que os nossos sonhos nasceram.